sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Vidas secas (1938) – Graciliano Ramos


Desenho: Aldemir Martins

CLÁSSICO BRASILEIRO de 1938

MINHAS LEITURAS


INTRODUÇÃO

Este livro é uma das obras mais marcantes que já li. Neste ano, fiz minha quarta leitura. A primeira vez que o li foi no ano 2000. Eu já tinha mais de trinta anos de idade e as mazelas do Nordeste eram quase as mesmas das décadas e séculos anteriores. Nada, nem ninguém, dava jeito naquele mundo. Na verdade, nenhum político ou política havia tido um foco sério naquele mundo.

Os poucos compromissados com a causa do povo do Nordeste, como Celso Furtado, não lograram êxito devido aos vícios da política, tanto local quanto nacional.

Uma das coisas mais marcantes para mim, ao ler a obra hoje, é em relação àquele Brasil descrito por Graciliano Ramos quando comparado com o Brasil atual, após os dois mandatos do presidente Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores. A diferença é fantástica!

Hoje, o Nordeste é pujança e a esperança é real e já é presente – é a região com o maior crescimento do PIB no País. A esperança é real e extrapola aquela que o povo simples brasileiro já carrega em seu DNA.

O livro serve de denúncia e de aviso. Vale a pena investir na política focada na solução dos problemas do povo de um país. Vale a pena. O Brasil provou isso no século XXI.

Qualquer região do mundo habitada pelos humanos tem possibilidades promissoras quando a política é focada na busca de soluções para melhorar a vida daquele povo e daquela comunidade. A inteligência humana, quando canalizada para o bem comum, é ilimitada.


VIDAS SECAS

A primeira coisa admirável é a linguagem ímpar de Graciliano. A obra é uma ficção em prosa, mas poderia ser construída em versos. O ritmo do autor é muito característico. Seco e direto, porém sensibilizador.

Vejam como poderíamos ler poesia em Vidas Secas. Coloco em verso o início da obra.


MUDANÇA

Na planície avermelhada

os juazeiros alargavam duas manchas verdes.
Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro,
estavam cansados e famintos.

Ordinariamente
andavam pouco,
mas como haviam repousado bastante
na areia do rio seco,
a viagem progredira bem três léguas.
Fazia hora que procuravam uma sombra.
A folhagem do juazeiro apareceu longe,
através dos galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para lá,
devagar,
sinhá Vitória com o filho mais novo
escanchado no quarto
e o baú de folha na cabeça.

Fabiano sombrio,
cambaio,
o aió a tiracolo,
a cuia pendurada numa correia
presa ao cinturão,
a espingarda de pederneira no ombro.

O menino mais velho
e a cachorra Baleia
iam atrás.


O PAPAGAIO: ESPELHO DA LINGUAGEM DA FAMÍLIA

“Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo. Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.”

O papagaio acabou aprendendo a repetir o som de quem “falava” pela família: a cachorra Baleia.


ERAM COMO COISAS, MAS QUERIAM VIVER

“Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver (...) Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferenciava muito da bolandeira de seu Tomás...”


FABIANO: HOMEM OU ANIMAL?

“- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.”

“Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.”


NA PRISÃO INJUSTA, LEMBROU-SE DA FAMÍLIA

“Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinhá Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinhá Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente.”


Desenho de Aldemir Martins

TRAÇOS MARCANTES NA OBRA

Algumas características de Vidas Secas são bem conhecidas do público leitor.

- a não linguagem dos humanos;

- as características antropomórficas da cachorra Baleia, o ente da família mais “humano” e “inteligente”;

- as personagens humanas da família de retirantes são caracterizadas o tempo inteiro como animais. Os meninos não têm nome, não usam roupas. A família mais grunhe do que fala. Os meninos têm que aprender com Baleia várias coisas.

- o capítulo sobre Baleia nasceu como um conto e depois foi incluído no livro. O livro foi feito ao redor de Baleia. Não quero comentar sobre os acontecimentos finais em relação aos personagens. Prefiro que leiam a obra e descubram.

- os ciclos viciosos que se repetem desesperançosamente: a violência da “lei” contra os humildes; a sabida retirada e fuga da seca mais cedo ou mais tarde; a tendência das proles dos sertanejos serem rudes e não verem um destino melhor do que o de seus pais.


MINHA IMPRESSÃO DAS LEITURAS ATÉ 2002

Escrevi no livro o que havia sentido nas três leituras que eu fizera até a eleição para presidente do Brasil do metalúrgico Lula da Silva, filho de retirantes nordestinos como a família de Fabiano e Sinhá Vitória.

Que situação infeliz! Isto acontecia em 1938. Isto acontece em 2002. São tantos homens, mulheres e crianças que sofrem com a seca no Nordeste.

2002: são tantos homens, mulheres e crianças que sofrem fome nas favelas de nosso País. Casas de madeira e latão. Casas de papelão. Crianças cheirando cola e crack nas praças. Homens defecando nas ruas. Andem nas metrópoles e vejam isto. 1938/2002 – sertão nordestino... São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte...

E as produções mundiais a cada dia batem novos recordes. E a fome a cada dia bate novo recorde.

Sempre assim. E os fabianos não atinam que têm direitos. Os homens brancos ficam nervosos e ameaçam só de ouvir grunhidos “hum, hum” dos fabianos reclamando.

O coração está apertado e mofino!


Capa da primeira edição de Vidas Secas.

CONCLUSÃO

Minha reflexão após tudo isso está no início, em minha introdução:

Qualquer região do mundo habitada pelos humanos tem possibilidades promissoras quando a política é focada na busca de soluções para melhorar a vida daquele povo e daquela comunidade. A inteligência humana, quando canalizada para o bem comum, é ilimitada.

Não era sonho aquilo que sempre buscou nosso mestre e sábio Celso Furtado. Ele faleceu ainda no início das transformações por que passaria o Nordeste brasileiro neste século XXI sob a batuta do metalúrgico retirante Lula da Silva.

Falta muito ainda, tanto para o nordeste quanto para os milhões de fabianos e família. Mas há esperanças quando há foco na política de desenvolvimento com distribuição de renda e riquezas.

Sigamos buscando o fim das vidas secas. Vimos que é possível.


William Mendes


Bibliografia:

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 80ª edição. Editora Record. 2000.

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